Página 9 - Caderno Consci

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SALVADOR
QUINTA-FEIRA
20/11/2014
ESPECIAL
CONSCIÊNCIA NEGRA
9
Conheça a infância de pessoas que
lutaram contra o racismo no Brasil
Os jovens e as crianças têm sido
vistos como a esperança de
preservação das tradições das
comunidades negras. Em Ilha
de Maré, área quilombola
pertencente a Salvador, a rotina
dedicada às brincadeiras no chão
de terra e aos ofícios tradicionais
garante a manutenção dessas
práticas culturais.
No turno oposto ao da escola
tradicional, as crianças se revezam
entre mariscada, pescaria, renda
de bilro, futebol, informática e
jogos eletrônicos.
Apesar da força da tecnologia, a
rua ainda é o principal palco das
brincadeiras. Empinar pipa, catar
siri, camarão e pequenos peixes,
subir em árvores e andar de
bicicleta são as ações preferidas.
“Eu sei mariscar, pescar e
cozinhar. Pesco desde 3 anos
com meu pai”, gaba-se Álvaro
César, 9 anos, morador de
Santana, uma das localidades de
Ilha de Maré. “Você pega uma
colher ou garfo e cava para achar
o marisco”, tenta ensinar o
serelepe Alexandre Jorge, 9,
primo de Álvaro.
LEGADO
Educadoresdopovoado incentivam
as crianças a acompanharem os
pais em atividades tradicionais,
além de integrá-los ao processo de
educação.
A ajuda aos adultos na pesca, na
mariscada e na renda passa longe
daexploraçãode trabalho infantil.
Lá, o que se vê é a tentativa de
preservação cultural.
As atividades artesanais – como
a confecção de balaios com palha
edepeças comrendadebilro–são
o sustento de muitas famílias. “Eu
estou aprendendo ainda [a fazer
renda], mas eu gosto”, afirma
Joisse Souza, 12 anos, moradora
de Santana.
“Já eu não gosto muito”, diz
Íris Bonfim, 14 anos, que sonha
ser veterinária. “Para mim, a
renda é uma forma de ganhar
dinheiro para fazer faculdade de
veterinária”, explica.
ParaArlonRocha, 8anos, nativo
de Praia Grande, a busca por
mariscos, camarões e peixes na
maré é só brincadeira. “Gosto de
catar e devolver aomar, porque os
bichinhos têm que crescer e viver
na natureza”, ensina.
Enquanto conversava com a
equipe de reportagem, Álvaro
César carregava o livro Luana e as
sementes de Zumbi, história de
uma menina negra que usa um
berimbau encantado para en-
contrar Zumbi dos Palmares e
outros heróis negros.
“Eu ia apanhar bastante [na
escravidão], porque ia fugirmuito”,
diverte-se Álvaro, comentando a
história do livro. “Zumbi é o herói
do nosso povo, tenho orgulho da
minha cor”, continua. “Racismo é
quando uma pessoa chama outra
de negra querendo xingar”,
define.
“Isso é aquilo que a gente
aprende na escola, da consciência
negra, Álvaro?”, interrompe o
primo Alexandre. “Eu aprendi que
se Zumbi não existisse, a gente ia
apanhar, porque somos negros”,
diz.
Ao contrário de Álvaro, Alexandre
etantosoutros,algumascriançasda
comunidade têm mais dificuldade
para assumir a identidade. É o caso,
por exemplo, de Lucas Emanuel, 9
anos. “Não me considero negro,
porque os negros apanham e eu
não quero apanhar”, justifica.
“Francisco nasceu livre, em 1655, em
Palmares e, como outras crianças do
quilombo, conviveu com seus pais,
brincando e ouvindo histórias até os
cinco anos de idade, quando foi
raptado juntamente com outros
quilombolas, numa das investidas dos
portugueses”.
Saiba mais da vida de Zumbi
contada por Vilson Caetano, baba-
lorixá do terreiro Ilê Obá L’Okê e
antropólogo. Você encontra essa e
outras belas histórias no blog Mundo
Afro
(www.mundoafro.atarde.com.br)
ZUMBI E O SONHO
DE LIBERDADE
O transporte dos moradores de
Ilha de Maré para o outro lado de
Salvador, em São Tomé de Paripe,
é feito principalmente por canoas
motorizadas comcapacidade para
até sete pessoas.
A falta de uma opção mais
segura de locomoção impõe
dificuldades até na educação das
crianças nativas da ilha.
Como o povoado só tem escola
até o 5º ano (antiga 4ª série), os
alunos mais avançados, com
idade a partir de 11 anos, precisam
se deslocar para o outro lado do
município.
Eles têm que chegar a bairros
como São Tomé, Periperi, Paripe,
entre outros, para ter acesso às
escolas que oferecem as séries a
partir do ensino fundamental II. O
problema é o mar que separa a
ilha do resto da cidade.
OBSTÁCULO
A prefeitura de Salvador até
disponibiliza barcos para a
locomoção dos estudantes, mas,
segundo moradores, qualquer
alteração no tempo é motivo para
a travessia ser suspensa.
O mar da Baía de Todos-os-
-Santos é realmente agitado por
aquelas bandas, principalmente
nos momentos de mudança de
maré.
Enquanto fazia o caminho de
volta, a equipe de A TARDE sofreu
comobalançodomar.Naprimeira
das duas visitas realizadas à ilha,
a sensação é que a canoa parecia
que ia virar.
Existe uma travessia oficial, em
barcos maiores, com capacidade
para 90 pessoas. No entanto, a
viagem para a Ilha de Maré só
começa quando as embarcações
estão com uma certa quantidade
de passageiros.
A única saída, nesse caso, é
apelar para o transporte informal,
para realizar o trajeto.
TRANSPORTE É
FEITO POR CANOAS
MOTORIZADAS
PROTEÇÃO
YURI SILVA
repórter
EM ILHA DE MARÉ, BAIRRO DE
SALVADOR COM JEITO DE QUILOMBO,
CRIANÇAS VALORIZAM TRADIÇÃO
As crianças brincam
e aprendem sobre
ofício dos pais
1.
Meninas na arte de
fazer renda
2.
Álvaro
Maciel em hora de
lazer
3.
Alexandre
concentrado na aula
1
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