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Água como direito e como mercadoria – os desafios da política
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Bahia anál. dados, Salvador, v. 23, n. 2, p.437-459, abr./jun. 2013
jogo supostamente racional e equilibrado. Em se tra-
tando de um bem público, o seu uso e controle devem
ser discutidos e definidos na esfera da política – en-
tendida como espaço público,
do debate público e da consti-
tuição do interesse público, e
não na esfera da economia,
afinal, vale sempre lembrar
que o mercado é o
locus
do
mais forte e não do mais jus-
to (HABERMAS, 1998). Esse
debate situa-se no terreno da política e do embate
entre projetos de Estado e de sociedade distintos.
Afinal, por que a problemática das águas passou a
ter um estatuto próprio, isso resulta da singularidade
desse recurso ou da lógica que a converte em capi-
tal? Não se corre o risco de estar, tão somente, subs-
tituindo a antiga setorialização por uma especializa-
ção pretensamente mais eficiente e democratizante?
Vários segmentos sociais, agregados em torno
do Fórum Nacional da Sociedade Civil, nos Comitês
de Bacias Hidrográficas e em várias outras organiza-
ções, têm colocado a necessidade de reestruturação
do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recur-
sos Hídricos (Singreh) e o Sistema Nacional do Meio
Ambiente (Sisnama), instituído há 25 anos e que nun-
ca foi objeto de uma revisão profunda e sistemática
de seus fundamentos e atribuições. Ademais, muitas
são as vozes que questionam os fundamentos que
instituem a água e as demais riquezas naturais fun-
damentais como bens econômicos, o que significa
que, a despeito da atual crise das utopias, é neces-
sário repensar a relação entre sociedade e natureza,
entre o público e o privado e, consequentemente, os
desafios postos pela complexa relação entre água
como mercadoria e como direito.
A POLÍTICA DAS ÁGUAS EM TEMPOS DE
FLEXIBILIZAÇÃO PRODUTIVA
Afinal, como o conflito entre a mercantilização e
o direito à água se materializa hoje no Brasil? Depois
de décadas de luta pela defesa do meio ambiente e
de um lento, mas progressivo, processo de institu-
cionalização da agenda ambiental, de uma década
de neoliberalismo e da im-
plementação de um projeto
político situado no campo da
esquerda, assiste-se à reedi-
ção, no âmbito do Poder Pú-
blico, em várias escalas de
governo, de um discurso que
tem colocado a proteção am-
biental como um fator limitante do desenvolvimento.
O deslocamento das referidas forças políticas para
o centro da arena política esvaziou o debate sobre
o significado político do projeto de desenvolvimento
em curso e, pode-se dizer que, nos dias de hoje, se
padece do ‘esquecimento’ da política
,
e de certa
fetichização da técnica, o que traz consequências
do ponto de vista da compreensão e da participa-
ção nos processos de implementação das políticas
públicas, particularmente das políticas ambientais.
Com poucas exceções, o que tem pautado a
arena política é o embate entre as forças que pro-
põem uma integração mais ou menos elitizada ou
subordinada ao cenário da economia globalizada
(em permanente estado de crise). É como se qua-
se todos estivessem preocupados em administrar o
sistema. Nesse cenário, ganha cada vez mais es-
paço, no âmbito da política pública, a implementa-
ção de mecanismos econômicos, e os instrumentos
de comando e controle (quando não devidamente
adequados aos interesses da acumulação) passam
a ser vistos como obstáculos ao desenvolvimento.
A lei precisa ser ‘ajustada’ aos novos tempos. Haja
vista as alterações do Código Florestal, com a redu-
ção das Áreas de Proteção Permanente (APP) e de
reservas legais, a anistia a desmatadores ilegais, o
retrocesso na criação de unidades de conservação
e mesmo o licenciamento arbitrário de obras com
problemas ambientais por todo o país. Além disso,
a lei de proteção à Mata Atlântica passou a ser vista
como um atraso e a expansão da monocultura na
Amazônia e no Pantanal, além da mineração em
Com poucas exceções, o que
tem pautado a arena política é
o embate entre as forças que
propõem uma integração mais ou
menos elitizada ou subordinada ao
cenário da economia globalizada