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Água como direito e como mercadoria – os desafios da política
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Bahia anál. dados, Salvador, v. 23, n. 2, p.437-459, abr./jun. 2013
INTRODUÇÃO
Este artigo discute o conflito entre a condição
da água como direito e como bem econômico no
processo de implementação da Lei das Águas no
conjunto do país, com especial ênfase na experiên-
cia da Bahia e na gestão das águas em Salvador.
No atual contexto de globalização e de flexibilização
produtiva, as questões ambientais passam para o
segundo plano da agenda internacional e nacional,
com sérios desdobramentos do ponto de vista da
política e da problemática ambiental. Predomina,
mesmo no âmbito do chamado neodesenvolvimen-
tismo em curso, a política de atribuir ao mercado a
regulação dos recursos ambientais o que, no caso
da água, qualificada como um direito universal, tem
sérias repercussões do ponto de vista das condi-
ções de vida e da qualidade ambiental, particular-
mente em situações de pobreza e de precariedade
como as do estado da Bahia e de cidades como
Salvador.
Como afirmam documentos oficiais, como os da
Organização das Nações Unidas para a Educação,
a Ciência e a Cultura (UNESCO) particularmente
(WORLD WATER ASSESSMENT PROGRAMME,
2012), fica cada vez mais evidente a intrínseca re-
lação entre desenvolvimento e água. Entretanto,
no atual contexto de crise do capitalismo mundial,
os referidos documentos reforçam a necessidade
de aprimoramento dos modelos e instrumentos de
gestão adotados nas últimas décadas, como tam-
bém a criação de melhores condições de atração
de investimentos para a área de recursos hídricos,
atualmente comprometida em função da situação de
incerteza e de risco em relação às possibilidades
de retorno financeiro. É nesse contexto de crise que
textos como os de Addams e outros (2009) reforçam
o significado de inovação, informação, tecnologia,
mas também
valuing
,
pricing
e
marketing
, que cada
vez mais passam a ser ressaltados como elementos
estratégicos na gestão das águas (ADAMS, 2009).
A análise da complexa relação entre água como
direito e como mercadoria nos situa no contexto da
implementação da Lei das Águas (BRASIL, 1997)
e do seu particular desdobramento em realidades
como as do estado da Bahia e da cidade de Sal-
vador. A referida lei institui um novo paradigma de
gestão no país, estimula o uso múltiplo e a univer-
salização do acesso e, a exemplo do que acontece
no plano internacional, institui instrumentos eco-
nômicos de gestão, atribuindo valor econômico à
água. Esse novo padrão de regulação descentraliza
a gestão, estabelece a bacia hidrográfica como uni-
dade de análise e de gestão, além de criar um comi-
tê, instância de deliberação e de implementação da
política – o que se constitui em significativo avanço
em relação ao modelo centralizador e setorializado
até então existente no país.
O que a análise de documentos oficiais de ava-
liação do processo de implementação da Lei das
Águas revela, a exemplo dos relatórios
Conjuntura
das Águas,
em suas várias versões, é que o mode-
lo político-institucional implementado avança lenta-
mente na instituição de instrumentos de gestão, a
exemplo da outorga e da cobrança pela água bruta,
entretanto, esse avanço não se traduz, necessa-
riamente, na efetiva democratização do acesso à
água. Isso não significa afirmar que o atual modelo
de gestão não favoreça a uma maior discussão so-
bre as águas no âmbito dos comitês, mas que es-
tas instâncias de participação refletem a correlação
de forças e de poder na sociedade, com destaque
para a incidência de representantes dos interesses
econômicos nas decisões e para a centralização
destas no âmbito do Estado. Além disso, significa
afirmar que as ações do comitê estão voltadas, so-
bretudo, para a operacionalização e a implementa-
ção política das águas e que as decisões relativas
à alocação de água não contemplam, necessaria-
mente, as decisões gestadas no âmbito do comitê.
É no contexto das tensões e contradições da
racionalidade capitalista que se situa o presente
objeto de reflexão, ou seja, o conflito entre a água
como direito e como bem econômico. Parte signifi-
cativa da literatura sobre a política e a gestão das
águas parte do princípio de que existe convergência