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Cobrança pelo uso da água e sustentabilidade da gestão de bacias hidrográficas: uma proposta paraa Bacia do
Rio São Francisco
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Bahia anál. dados, Salvador, v. 23, n. 2, p.397-408, abr./jun. 2013
INTRODUÇÃO
A primeira experiência de cobrança pelo uso
da água bruta completou o seu primeiro decênio
em março último, regida pelos termos da Lei Fe-
deral 9.433/97 que instituiu a Política Nacional de
Recursos Hídricos no Brasil. Os fundamentos bási-
cos então estabelecidos reproduzem as principais
diretrizes da gestão de água bruta aprovadas por
inúmeros países e ratificadas pela Organização das
Nações Unidas (ONU).
Entre os instrumentos de gestão, a cobrança foi
apresentada como o de viés econômico, introduzin-
do termos e elementos típicos da teoria econômica
que são vulgarizados nas discussões do dia a dia,
sem necessidade de preciosismo conceitual e sem
prejuízo do entendimento. Assim, nos termos da Lei
9.433/97 (BRASIL, 1997), a água passa a ser ca-
racterizada como um “bem econômico” dotado de
valor, devendo a cobrança atuar no reconhecimento
destas características, incentivando a racionaliza-
ção do seu uso e colaborando para a obtenção de
recursos financeiros para a gestão.
Contudo, no processo de aplicação da lei, a
interpretação desta utilizando o senso comum oca-
siona graves distorções na sua implementação e,
consequentemente, na sua eficiência. Além dos
desentendimentos conceituais decorrentes des-
te senso comum em que valor, preço e custo são
empregados como sinônimos, a vagueza inerente
ao termo valor torna bastante difícil sua aplicabi-
lidade. Adicionalmente, discutem-se os limites de
exigência e funcionalidade da cobrança, visto que,
embora esta seja indicada como um instrumento
arrecadatório de recursos, não pode ser conside-
rada a única fonte para este fim, mas deve ser su-
ficiente para estimular a racionalização do uso do
recurso hídrico. Estes, entre outros tópicos, vêm
sendo discutidos pela ONU desde 2000 através
do World Water Assessment Program (WWA), ca-
bendo ao segundo relatório (UNITED NATIONS,
2006) o debate sobre valoração e cobrança, entre
outros tópicos.
Na primeira seção deste trabalho é dada conti-
nuidade a essa discussão, apresentando questões
conceituais e teóricas que norteiam a cobrança
pelo uso da água, de forma a construir as bases
para o entendimento e a contextualização da pro-
posta. Na sequência, apresenta-se a metodologia
da proposta de cobrança para a garantia da sus-
tentabilidade técnico-financeira da gestão em ba-
cias hidrográficas, que é posteriormente ensaiada
em dados reais da Bacia Hidrográfica do Rio São
Francisco (BHSF) onde já existe a cobrança pelo
uso da água bruta. O texto é finalizado com breves
discussões dos resultados apresentados.
CONSIDERAÇÕES ACERCA DA COBRANÇA
PELO USO DA ÁGUA BRUTA
Em 380 a.C., Platão referiu-se à água como “a
melhor de todas as coisas”, embora fosse ela tam-
bém a mais barata, devido a sua não raridade (PLA-
TO, 2010). Séculos mais tarde, em 1776, quando da
publicação da sua principal obra,
An Inquiry into the
Nature and Causes of the Wealth of Nations
, Adam
Smith discutiu os aspectos que envolviam o concei-
to de valor e introduziu a dicotomia “valor de uso –
valor de troca” (SMITH, 1904). O exemplo utilizado
para esclarecer a sutileza que distingue essas adje-
tivações substantivas foi divulgado como “paradoxo
do valor” ou “paradoxo da água e do diamante”. A
discussão proposta por Adam Smith centrava-se na
categoria valor e na sua distinção em relação ao
preço, conforme verificado no mercado, permitindo
assim identificar os critérios que regulavam as tro-
cas das mercadorias.
Dos filósofos da antiguidade, passando por inú-
meros pensadores ao longo dos séculos, diversas
foram as discussões relacionadas à categoria valor
no âmbito da economia e na forma como este se
expressa em preços de mercado, não resultando
em conceito ou metodologia única e precisa. En-
tretanto, a despeito das divergências ideológicas
e considerando a amplitude conceitual do termo