Página 14 - Caderno Consci

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SALVADOR
QUINTA-FEIRA
20/11/2014
14
ESPECIAL
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Em 9 de janeiro de 2003, o então
presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula
da Silva, sancionou a Lei 10.639/03.
Ela determinou que o ensino da
história da África e da cultura afro-
-brasileira se tornasse obrigatório
em todas as escolas do país.
A iniciativa abre a possibilidade
de conhecer a contribuição
dos povos africanos e seus
descendentes para a formação da
nossa nação, o que ficava às vezes
esquecido nos livros didáticos.
“Além do próprio racismo, o
principal entrave era a falta de
formação dos professores”, diz a
professora Darci Xavier, que
ajudou Salvador a se tornar a
primeira capital do país a cumprir
a lei, em 2005. Darci conta que,
para conseguir adotar a lei, foi
necessário oferecer cursos de
formação para os professores e
criar os materiais didáticos.
Nessa época, Olívia Santana,
pedagoga e ativista do
movimento negro, foi secretária
municipal de Educação. Ainda
faltam ajustes, mas Salvador tem
escolas que são referência na
aplicação da lei, como a Eugênia
Anna dos Santos, a Mãe Hilda e a
Parque São Cristóvão.
Esse tipo de ação torna a
educação mais forte. Isso é
importante para que as crianças
desenvolvam seus talentos, como
aconteceu com as personalidades
que aparecem nas fotografias
abaixo em seu tempo de escola.
PARQUE SÃO
CRISTÓVÃO
É o cotidiano dos 650
alunos da Escola Municipal
Parque São Cristóvão que serve de
material para os assuntos trabalhados
em sala de aula. Desta forma, as crianças
demonstram maior interesse. Desde o ano
2000 a escola tem como referência para o
seu projeto pedagógico a história do
negro brasileiro e a sua contribuição ao
Brasil. A escola já foi premiada nos
Estados Unidos e em 2006 ganhou o
prêmio de melhor gestão. Foi
também considerada a 2ª
melhor escola do Brasil e
a 1ª do Nordeste.
MÃE HILDA
O foco na autoestima
da criança negra sempre fez
parte do projeto pedagógico da
Escola Mãe Hilda, que nasceu na
mesma época que o bloco afro Ilê Aiyê
e funcionava nas dependências do terreiro
Ilê Axé Jitolu, na Liberdade. “Quando saiu
a Lei 10.639, já trabalhávamos a história
africana em sala de aula”, explica
Hildelice dos Santos, diretora da unidade.
A instituição atende 240 alunos e conta
com um material pedagógico exclusivo.
A escola não é religiosa, mas educa
para o combate da
intolerância com base na
diferença de crença.
EUGÊNIA ANNA
DOS SANTOS
Mitos africanos, noções de
iorubá e afirmação positiva da
estética negra. Para os 350 alunos
da escola municipal, os temas fazem
parte da sua rotina. Funcionando dentro do
terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (São Gonçalo
do Retiro), a escola é fruto de um desejo
da primeira ialorixá do templo, mãe
Aninha, que sempre afirmou querer ver
seus “filhos com anel no dedo aos pés de
Xangô [seu orixá]”. Com o projeto
pedagógico Irê Aiyó (caminho da
felicidade), a unidade fomenta
a autoestima e a busca
pelo conhecimento.
VANGUARDA
A LEI 10.639/03 COMPLETOU 11 ANOS. SALVADOR FOI A PRIMEIRA CAPITAL DO PAÍS A COLOCÁ-LA
EM PRÁTICA DEPOIS DE AÇÕES PARA PREPARAR PROFESSORES E REUNIR MATERIAL DIDÁTICO
“Um dia um griot nascido nas terras africanas de Ilê Ifé, a cidade sagrada dos nossos ancestrais,
nos falou sobre Ekó Ilê. Ele disse que Ekó Ilê é aquela primeira lição que aprendemos em casa, com
nossosmais velhos, antesmesmo de irmos para a escola. Pois bem. Hoje vamos falar sobre a primeira
lição que o nosso menino Abdias aprendeu com sua mãe, a linda e doce dona Josina...
Saibamais detalhes dessa história contada por Lindinalva Barbosa, educadora emestre em linguagens.
Você encontra essa e outras belas histórias no blog Mundo Afro (www.mundoafro.atarde.com.br)
ABDIAS, O APRENDIZ DE EKÓ ILÊ
[ Mariene de Castro ]
Estudei numa escola de freira e sofri
muita discriminação por conta do meu
cabelo e minha cor. Uma das irmãs me
mandou voltar para casa diversas vezes
para cortar o cabelo ou prendê-lo. Eu
tinha medo dela e me escondia quando
a escutava tocando o sino. Como
sempre tive cabelo muito volumoso,
minha mãe o mantinha bem curto.
Com um microfone em mãos, a irmã
(diretora da escola) chamava atenção e
retirava fita do Senhor do Bonfim dos
braços das meninas. Eu nunca tinha
exposto essa situação, mas hoje acho
válido, pois, em pleno século XXI, ainda
vivenciamos abuso contra negros.
[ Jaime Sodré ]
Desde cedo fui muito interessado em leitura, desenho e pintura. Ganhava muitos
prêmios como desenhista. Um dos mais importantes foi o que ganhei da Biblioteca
Infantil Monteiro. Recebi um estojo de pintura dado pela bibliotecária Denise Tavares.
Estudei na Escola Getúlio Vargas, no Barbalho. Ela funcionava dentro do Instituto
Normal da Bahia. Lá eu ganhei muitas tintas para fazer os meus desenhos. Meu avô
era professor e meu pai também. Minha tia Regina era diretora do Colégio Azevedo
Fernandes. Ela me incentivava muito a estudar. Depois segui a profissão de
desenhista, com a qual ganhei meu primeiro salário. Minha infância foi dividida em
estudar, praticar esporte e desenhar. Também tive contato desde cedo com a
religiosidade de matriz africana e desenhava orixás. Uma vez recebi uma encomenda
para desenhar um caboclo. Essa fotografia é da minha formatura no Jardim de
Infância. Eu tinha sete anos, e quando terminava esse curso podia escolher, de forma
simbólica, a profissão. Eu quis ser professor, colei grau de beca e ganhei até anel que
tinha uma pedra azul. Mais tarde acabei virando professor e de desenho. Sou mito
feliz por saber desenhar. Alem disso, minha família tem muitos professores, como tia
Regina, que era a única negra da turma de 22 professoras.
[ Mãe Stella ]
Estudei na Escola Nossa Senhora
Auxiliadora, cuja proprietária era a
professora Anfrísia Santiago. Eu era a
única negra de minha sala e em toda a
escola só estudavam três negras. Se o
preconceito sobre minha cor existia, eu
não o senti. É claro que se deve levar
em conta o período histórico. Minhas
colegas gostavam muito de mim e
encontraram uma forma delicada,
ingênua e pertinente para a época. Elas
diziam: Stella, você não é preta, você é
marrom. Eu sentia como carinho. Hoje,
entendo como processo histórico. A
sociedade evolui, não no ritmo que
queremos, mas no que ela suporta.
[ João Jorge ]
Estudei na Escola Parque, um grande
colégio, na década de 60. Me lembro
de meu pai ter ido me buscar na escola
no dia 31 de março de 1964, em pleno
golpe militar. Recebi uma educação de
qualidade. A maioria dos meus colegas
era negros e mestiços. Éramos a
maioria, e a discriminação racial não
passava pela gente por isso. A minha
percepção do racismo se deu a partir
dos 8 anos, quando percebi que os
monumentos da cidade eram apenas
de brancos, queria saber por que não
tinha alguém parecido comigo. Se eu
tivesse visto essas referências, teria
uma infância ainda mais positiva.
[ Carlinhos Brown ]
No meu tempo, a expectativa era a de
que a escola não existia para a gente.
Meu professor me ensinou a ter esta
percepção e me conduziu para os meus
desejos próprios. Fico feliz de ver um
movimento de que participo há 30
anos ser um êxito e ter se voltado à
educação. Hoje o mundo nos reverencia
como a maior sala de aula de rua em
termo de educação musical. Se nós
estamos falando de escola, vamos
encontrar no legado de Neguinho do
Samba, Edgard Santos, Aderbal Duarte,
Sérgio Souto, Escola Pracatum, Projeto
Axé, Ilê Aiyê, Malê Debalê e outros.
Nessa escola serei eternamente aluno.
[ Margareth Menezes ]
Não me lembro de ter sofrido preconceito na infância. Minha família vem de Ilha
de Maré, onde, recentemente, descobri por meio do livro “Um defeito de cor”, de
Ana Maria Gonçalves, que era um dos esconderijos daqueles que conseguiam
fugir da escravidão. Não havia na nossa família nenhum tipo de diferenciação
entre negros ou brancos. Meus pais não nos ensinaram a viver com recalques,
muito pelo contrário, fomos criados interagindo com as pessoas,
independentemente de cor da pele. Eu particularmente era tímida, mas gostava
de brincar e participar das atividades. Morei a vida toda na beira do mar, na
Península de Itapagipe, em vários bairros. Na escola, eu e meus irmãos tivemos
professores brancos e negros. Tinha uma professora negra – a professora Iêda –
que era muito querida por todos. Esse questionamento de racismo quando não
ensinado não existe no mundo da criança. Graças a Deus, não tenho lembranças
de ter sofrido racismo na minha infância. Aprendi a acreditar na possibilidade de
viver em paz com todos, e é isso que acho importante: lutar contra a
discriminação racial em todos os lugares. Compartilhar a vida é possível, o que
diferencia um ser humano é a qualidade das suas ações.
[ Valmir Assunção ]
Eu estudei em uma escola que ficava
dentro da fazenda de um vizinho dos
meus pais. Não era uma escola
tradicional e a professora era
voluntária. Andava cerca de 2 km para
chegar lá. Depois fui para uma escola
municipal, já em Nova Alegria
(Itamaraju), e a distância passou para
6 km. A escola era simples, sofria
dificuldades e os alunos eram pobres, a
grande maioria negros e negras. Depois
de crescido que a questão racial se
expressou de maneira mais forte na
minha vida. Vi que o racismo também
é o responsável pela imposição da
pobreza e da subserviência.
[ Olívia Santana ]
Eu gostava de estudar. Mas ficava
chateada com os concursos de rainha
do milho, pois as meninas negras não
eram escolhidas. Chorava com os
apelidos quando eu ia com um lenço,
porque nem sempre eu tinha dinheiro
para espichar o cabelo. Mas meu bairro
me fortalecia. Tinha o terreiro de mãe
Feliciana, que era respeitado e ponto
de encontro dos jovens independente
da religião. Um dia, quando fiz 15 anos,
parei de alisar o cabelo e passei a usar
black e nunca mais recuei diante do
racismo. Aprendi a afirmar minha
condição de mulher, negra, de ser
humano capaz e muito mais feliz.
MAÍRA AZEVEDO
repórter
Conheça a infância de pessoas que
lutaram contra o racismo no Brasil
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presidente do Olodum
historiador e professor
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ialorixá